Especialistas dizem que falta de leis e instituições específicas também impedem o combate efetivo desse tipo de crime
Interesses financeiros e acesso a recursos tecnológicos, como a internet, fizeram com que, nos últimos anos, a prática da pedofilia se transformasse em um negócio rentável, disseminado e que não reconhece fronteiras. Os desafios para o combate a esse tipo de atividade foram colocados à mesa em uma série de debates realizada durante o 5º For-JVS (International Forum of Justice), em São Paulo.
Durante o evento, especialistas e autoridades de vários países ligados ao combate à pedofilia, foram unânimes ao apontar que, ao menos no caso brasileiro, a internet, a ausência de leis e instituições específicas e a ação de grupos que lucram com a exploração infantil são fatores que ainda hoje impedem o combate efetivo desse tipo de crime.
A reportagem do iG acompanhou dois dias de palestras e debates durante o fórum, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Confira abaixo os principais pontos das análises feitas por especialistas, brasileiros e estrangeiros, sobre a questão:
"Criminosos se aproveitam de vítimas e pedófilos"
Advogada diz que dinheiro movimentado por organizações criminosas é estimado em US$ 5 bilhões
Criadora do primeiro site brasileiro de denúncias online contra pedofilia, a advogada Roseane Miranda, de 37 anos, afirma que os principais patrocinadores desse tipo de crime não são somente os pedófilos, mas grupos organizados que se aproveitam dessa “clientela” para vender imagens, vídeos e até mesmo encontros com crianças ou adolescentes por meio da internet.
“São bandidos que querem dinheiro. E tem audiência para isso”, disse Miranda. Segundo ela, não há dados exatos sobre o dinheiro movimentado por essas organizações criminosas, mas há estimativas de que a atividade renda US$ 5 bilhões ao ano.
A advogada participou na última sexta-feira de um debate sobre o tema mediado pelo presidente do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, desembargador Antonio Carlos Viana Santos, durante o 5º For-JVS (International Forum of Justice), realizado na última semana na Fiesp.
Legislação
Miranda diz defender uma legislação específica para conter esse tipo de abuso. Segundo ela, a maior arma ainda é a conscientização. “O crime envolve a posse, exibição, venda e troca desse tipo de imagem até o rapto de crianças. Existem clubes hoje que fazem vídeos que mostram como o internauta quer ver o término do estupro: com a criança viva ou morta”.
Durante o debate, ela citou a dificuldade para se obter dados que permitam dimensionar o real problema da pedofilia no mundo atual. Com base em estudo publicado em 2005 por uma ONG italiana, o mais recente de que dispõe, citou apenas que uma em cada 33 crianças que acessam a internet tem contato com adultos que as convidam para passeios ou viagens.
O período em que esteve à frente das denúncias encaminhadas ao site, inicialmente criado como canal de protesto por ela e o marido, no entanto, ajuda a traçar um raio-X da situação. Segundo Miranda, entre 1998 e 2004, quando a Polícia Federal se encarregou de dar encaminhamento às denúncias feitas ao site (www.censura.com.br), a página registrou 8 milhões de acessos. No período, foram feitas 150 mil denúncias de supostos abusos.
O site foi criado quando Miranda tentou denunciar uma troca de mensagens que testemunhou em 1998 entre membros de uma sala de bate-papo virtual da qual estava inscrita. As fotos mostravam uma menina americana de seis sendo torturada, com algemas, durante ato sexual. Na ocasião, Miranda não encontrou um canal sequer para encaminhar a denúncia.
As fotos da menina foram transmitidas durante o encontro, e provocou comoção entre os participantes do encontro. “Sei que não podemos mostrar imagens de criança. Mas neste caso podemos: a menina não existe mais. Está morta. As outras fotos eram impublicáveis”.
"Medo de se expor ainda é maior dificuldade"
Presidente do TJ-SP diz que criança abusada "demora a exteriorizar. Às vezes nem exterioriza, não fala, pra não ser apelidado"
O presidente do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, desembargador Antonio Carlos Viana Santos, afirmou durante o 5º For-JVS (International Forum of Justice), realizado na última semana, na Fiesp, que a internet deu um “impulso” a um problema comum “no decorrer da história”. Segundo ele, com a exposição de fotos, filmes e contatos via webcam, crianças ficaram mais vulneráveis aos crimes de pedofilia.
No entanto, segundo ele, a grande dificuldade para a apuração de casos de abusos ainda é o medo da criança agredida em exteriorizar o problema. Durante a apresentação do fórum, há duas semanas, o desembargador causou polêmica ao dizer que as denúncias contra padres da Igreja Católica eram omitidas porque as vítimas temiam ficar conhecidas como “comida de padre”.
“A grande dificuldade é que quem é agredido demora a exteriorizar. Às vezes nem exterioriza, não fala, pra não ser apelidado. Isso só acontece dali a anos, quando pode desenvolver depressão profunda e complexos. A vergonha é igual à da mulher quando acontece o estupro”.
Viana diz que a situação tende a ser mais bem combatida à medida que forem criados mecanismos que garantam a segurança ao denunciante, tal como aconteceu com a instalação das delegacias para a mulher. “A mulher era violentada ou apanhava do marido e não ia para delegacia porque iam ser atendidas por homens que a ridicularizavam e perguntavam se não tinham sido abusadas voluntariamente. Hoje a delegada é mulher. E temos a Lei Maria da Penha. Temos que ter delegacias com profissionais com preparo psicológico para saber lidar com esse adolescente e deixar a criança mais à vontade”, disse.
“No Judiciário temos as varas de Infância e Juventude. Porque muitas vezes o problema está na família e o assistente social faz trabalho de campo para saber o que se passa com a criança. Se nós profissionalizarmos o combate, como aconteceu com a delegacia da mulher e lei Maria da Penha, vai haver essa conscientização”, disse Viana.
Outras dificuldades
De acordo com David Brassanini, adido no Brasil do FBI, a polícia federal norte-americana, as inovações tecnológicas e o maior acesso a serviços como internet se transformaram em terreno fértil para grupos criminosos ligados à exploração sexual. Segundo ele, os crimes cibernéticos estão “cada vez mais sofisticados” porque beneficiam o anonimato.
Para o agente, a prática de pedofilia não distingue países ricos e países pobres. Os pilares para o crime, diz, são a comunicação, a facilidade de obter dinheiro ilícito e a possibilidade de mudarem rapidamente de lugar.
A forma de se combater a questão, segundo Brassanini, é mapear, por meio de uma força-tarefa entre Ministério Público e policiais, as formas com que as organizações se comunicam e identificar a fonte de recursos com as quais atuam. Para isso, defende, é fundamental que haja agilidade em relação a indícios observados na internet, que podem ser retirados no ar a qualquer momento.
Para deputado, medo da "revitimização" cala abusado
Parlamentar defende campanhas específicas que impeçam a criança abusada de entrar num processo denominado "revitimização"
Autor de seis projetos contra pedofilia na Assembleia Legislativa de São Paulo e autor do requerimento que resultou na criação recente de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Casa sobre o tema, o deputado estadual José Bruno (DEM) afirma que não existem hoje no País instituições que garantam a prevenção do crime ou o tratamento para as vítimas de abusos.
Segundo o deputado, no entanto, o momento atual é propício para que sejam criadas delegacias específicas para tratar da violência sexual contra menores. A tendência, afirma, é que a difusão de notícias envolvendo crianças e adolescentes leve ao surgimento de um fenômeno semelhante ao que possibilitou o advento recente de delegacias de proteção à mulher. “Isso fez com que as mulheres tivessem coragem de denunciar o que viam no próprio lar. O assunto deve ser combatido com políticas públicas para prevenção e tratamento”.
"Revitimização"
Para que isso aconteça, ele defende também que sejam promovidas campanhas específicas que impeçam a criança abusada de entrar num processo denominado “revitimização”. Isso acontece quando a vítima não recebe acompanhamento adequado e sofre constrangimento cada vez que realiza relatos sobre um eventual abuso a autoridades diversas. O deputado defende que os depoimentos devem ser preservados, e critica o fato de que, atualmente, a criança tenha que se pronunciar todas as vezes que é chamada para esclarecer os fatos diante de conselhos tutelares, policiais, promotores e juízes. “A criança tem que ser ouvida num ambiente reservado, sem a presença de adultos, estranhos ou mães coniventes que possam inibi-la e agravem seu estado emocional. Deve ter acompanhamento multidisciplinar”.
Para que o silêncio seja rompido, afirma, é necessário que até mesmo as academias de polícia deem ênfase a esse tipo de atendimento, porque muitas vezes as autoridades não têm sensibilidade para dar ao caso o tratamento adequado. Para que funcione, diz ele, as vítimas precisam contar com instituições como casas-abrigo, para que não procurem nas ruas e na criminalidade uma segurança que não encontra em casa.
Antes de tudo, no entanto, é preciso criar campanhas para que o problema seja esclarecido e debatido dentro da escola, afirma o parlamentar. Seria uma forma, diz ele, de promover esclarecimentos e fazer com que a criança saiba que pode estar sendo submetida a algum tipo de abuso que desconhece. José Bruno afirma que, apesar de muitas escolas discutirem abertamente a questão da sexualidade, muitas evitam o tema da pedofilia, espécie de tabu nessas situações. “Já vi imagens de uma criança de oito anos que era abusada por vários homens. Ela sorria porque não tinha discernimento do que estava acontecendo”.
Agressor próximo
Com base em dados coletados no Hospital Pérola Byington, onde metade das mulheres vítimas de abusos atendidas é criança ou adolescente, ele afirma que o agressor, na maioria das vezes, são os próprios pais ou padrastos da criança, seguidos pelo tio.
O local de abordagem, onde acontece o crime, é a própria residência do adolescente (em 66,7% dos casos), seguida pela casa do agressor (20,7%). A comunicação do abuso é feita geralmente à mãe (59,7%); o pai é o refúgio somente em 2,3% dos casos, menos até do que o tio (8,1%) ou algum profissional da Saúde (5,8%).
A denúncia, relata o parlamentar, muitas vezes não é encaminhada porque a mãe depende do marido do marido e acaba se omitindo em vez de levar o caso às autoridades.
Outro problema hoje comum, afirma ele, é a escassez até mesmo de equipamentos adequados para o atendimento em hospitais, como aparelhos ginecológicos, para tratar dessas vítimas. “A conscientização seria o primeiro passo. Na CPI vamos tentar saber o que acontece com os conselhos tutelares? Qual o preparo ou despreparo que encontramos? Eles recebem denúncias, mas não tem sala ou computador adequado muitas vezes”, diz.
No âmbito da legislação, o deputado diz notar avanços em relação ao combate ao problema, como quando o abuso de meninos passou a ser enquadrado como estupro e não mais como atentado violento ao pudor – o que elevou a pena em casos de condenação.
“Começamos a trabalhar com a pedofilia há dois anos. Naquele ano, acompanhei o trabalho da CPI do Senado sobre o caso de um rapaz que aliciava crianças. Ele foi preso quando oferecia a própria sobrinha a um rapaz que conheceu na internet. Teve uma audiência que pude acompanhar. Vi imagens vendidas na internet, por US$ 1 mil, US$ 5 mil. E quanto mais jovens, maior era o valor. São crimes de covardes contra quem não pode se defender. E o pedófilo tem um perfil social muito difícil de ser identificado”, afirma.
Escola Base: o pré-julgamento de pessoas suspeitas
Preso durante o caso diz temer novos pré-julgamentos. "A luta é genuína, mas não pode haver caça às bruxas"
Preso e investigado durante o caso Escola Base, em que donos de uma escola de São Paulo foram acusados de pedofilia e, mais tarde, inocentados, o americano Richard Pedicini afirma temer que o combate à pedofilia no País gere outro tipo de abusos: o pré-julgamento de pessoas suspeitas.
O episódio, ocorrido há 16 anos, é até hoje citado em cursos de direito e jornalismo como exemplo de como erros cometidos durante investigações podem resultar em problemas para acusados inocentes. Pedicini mora hoje em São Paulo com a mulher e a filha brasileiras, trabalha como tradutor e diz realizar uma espécie de monitoramento de casos como o da Escola Base que ainda acontecem no País.
“Quase sempre existe muito barulho para pouca evidência. Vocês continuam condenando inocentes como já fizeram no passado”, disse ele, dirigindo-se a jornalistas e militantes antipedofilia presentes num debate sobre o tema durante o 5º For-JVS (International Forum of Justice), em São Paulo.
Pedicini, que estava na plateia, citou um caso ocorrido na cidade de Catanduva, no interior de São Paulo, onde duas pessoas foram condenadas sob suspeita de praticar abusos em dezenas de crianças. Segundo Pedicini, os suspeitos foram condenados à prisão mesmo não havendo qualquer laudo que provasse que as crianças haviam sido molestadas. Diante da manifestação, o clima ficou tenso no auditório, e levou o deputado José Bruno (DEM), um dos participantes do debate, a pedir que o americano não usasse sua experiência pessoal como forma desacreditar a luta contra um problema “grave”.
“A luta é genuína, mas não pode haver caça às bruxas. Quando aconteceu comigo não queriam ouvir o que eu tinha a dizer”, respondeu o americano. “É preciso tomar cuidado com as denúncias. No Paraná, as delegacias especializadas dizem que 80% das denúncias que recebem são levianas”, afirmou.
Logo após a manifestação, a advogada Roseane Miranda, criadora do primeiro site de denúncias online contra pedofilia no País, comentou sobre as dificuldades para se filtrar acusações do tipo. “É realmente delicado. Mesmo no caso de padres envolvidos, é preciso diferenciar quem são as pessoas e quem são as instituições. Conheço padres que dizem ter receio até de abraçar crianças hoje em dia com medo de ser mal-interpretado. Acompanhei também o caso dos padres de Arapiraca. Aquilo que a CPI do Senado fez na cidade foi um circo. É preciso tomar cuidado com isso”.
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